Transformação viral – Logo após o aparecimento dos primeiros casos da gripe suína, no México, em abril de 2009, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, divulgou que a doença poderia se transformar em uma pandemia – o que de fato ocorreu. Um ano e meio depois, os cientistas do CDC continuam tentando entender a patologia do vírus da influenza A H1N1, causador da gripe.
De acordo com Sherif Zaki, chefe do Departamento de Patologia e Doenças Infecciosas do CDC, o H1N1 pode estar se transformando e adquirindo uma patologia semelhante à do vírus da influenza sazonal, que causa a gripe comum.
Zaki explica que o H1N1 continua circulando e os surtos podem voltar a ocorrer. Mas com o avanço do conhecimento sobre as possíveis mudanças em suas características, com desenvolvimento de novas vacinas e com a continuidade das campanhas de educação e prevenção, os riscos serão baixos.
Por outro lado, as pesquisas têm mostrado que, nos casos fatais de influenza, a incidência de coinfecções com bactérias é maior do que se imaginava.
Zaki participou, na semana passada, do 3º Encontro de Patologia Investigativa e da 13ª Jornada Internacional de Patologia, realizados pelo Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. Leia a seguir a entrevista concedida pelo cientista norte-americano à Agência FAPESP.
Agência FAPESP – Há um ano e meio surgiu o surto de gripe A, que matou mais de 100 pessoas no México e marcou o início de uma pandemia. Hoje, o CDC continua estudando o H1N1. O que há de especial na patologia desse vírus?
Sherif Zaki – Há muitas diferenças entre os vírus da influenza sazonal, que causam a gripe comum, e o H1N1. Eles atacam diferentes partes do pulmão. O vírus da influenza sazonal envolve mais as vias superiores, traqueia e brônquios. É uma doença das vias respiratórias superiores. O H1N1 ataca mais a parte periférica, ou inferior, dos pulmões, causando mais pneumonia. Essas diferenças têm a ver com as partes dos pulmões a que estão ligados os receptores desses vírus. As doenças que eles causam, portanto, são um tanto diferentes.
Agência FAPESP – Essas diferenças também se refletem na gravidade da doença?
Zaki – A questão é que os pacientes que têm certas condições subjacentes – como obesidade extrema, diabetes, câncer ou algum tipo de imunossupressão – são mais suscetíveis a forma severa da doença. E os mais jovens são mais suscetíveis à influenza do H1N1 do que à sazonal. Essa última normalmente atinge com maior incidência gente acima de 60 anos. A gripe do H1N1 envolve mais a faixa dos 20 aos 55 anos por uma questão relacionada à imunidade. As pessoas nessa faixa não foram expostas a vírus similares, enquanto as mais velhas já foram e, por conta disso, desenvolveram algum tipo de imunidade a eles.
Agência FAPESP – Há ainda desafios científicos envolvidos com a patologia desses vírus?
Zaki – Sim, ainda há muitas coisas que não entendemos. Acho que o próximo desafio será prever o que acontecerá em relação à influenza no próximo outono no hemisfério Norte. Não sabemos com que intensidade ela voltará, quantas pessoas serão afetadas, qual a disponibilidade de vacina ou como as novas vacinas serão incluídas nos programas regulares de vacinação. No caso da H1N1, essas perguntas são muito importantes porque não sabemos se esse vírus está aqui para ficar. Não sabemos se ele se tornará uma outra influenza sazonal, ou se é algo que passará. Há algumas evidências de que o vírus pode estar se modificando com o tempo, aproximando-se da patologia da influenza sazonal. Há muitas perguntas a fazer e temos que continuar pesquisando.
Agência FAPESP – Depois de abril de 2009 o surto do vírus H1N1 gerou muitas manchetes nos jornais. Mas, agora, parece que o assunto arrefeceu. A pandemia foi superada? Qual o desafio daqui em diante em termos de epidemiologia?
Zaki – Essa é uma questão muito boa e que nos intriga. O vírus ainda está aí, gerando novos casos da doença. Mas, como ocorre com a gripe sazonal, dependendo da localização de cada país – no hemisfério Norte ou Sul –, há diferenças na estação em que ocorrem os surtos de gripe. O fato é que o vírus não desapareceu, ele ainda está circulando. A pergunta agora é: a cepa que causou o último surto foi ou não substituída por uma nova cepa? É típico do vírus da influenza ter uma cepa circulando quando, subitamente, ela é substituída por uma nova.
Agência FAPESP – É possível prever qual será a próxima cepa a circular?
Zaki – Sempre temos várias linhagens em ação – a questão é saber qual delas vai predominar. É por isso que a vacina muda a cada ano. Temos que tentar prever qual será a principal cepa no próximo ano. Precisamos de vários meses para preparar as vacinas e as decisões devem ser feitas cinco ou seis meses antes. Especialistas de todo o mundo se encontram, discutem sobre as linhagens, trocam informações e fazem recomendações para a OMS sobre quais as novas linhagens que devem ser incluídas na vacina do ano seguinte.
Agência FAPESP – As vacinas são eficientes?
Zaki – Elas são eficientes em 60% a 70% dos casos. São altamente recomendadas para os muito jovens ou muito velhos, além de pessoas com doenças como diabetes, câncer ou asma. Grupos suscetíveis a essas e outras doenças devem tomar a vacina. Mas há um aspecto muito importante: não se trata só da vacina da influenza. Um dos problemas da influenza é que muitas vezes há coinfecções bacterianas. E estamos constatando que o vírus H1N1 tem uma incidência maior de coinfecções com bactérias do que pensávamos antes.
Agência FAPESP – O vírus abre as portas do organismo para as bactérias?
Zaki – Sim, basicamente ele abre as portas danificando as defesas do corpo. É importante saber quais são as bactérias com maior incidência nesses casos, pois temos vacinas também para algumas delas. Esse é um componente muito importante para a prevenção, não só para a influenza, mas também para outras bactérias associadas – em especial a infecção por estreptococos, que sabemos ser comum entre pacientes de gripe. E essas infecções afetam especialmente pessoas com aquelas condições que mencionamos, como crianças e diabéticos.
Agência FAPESP – A doença causada pelo vírus H1N1 é realmente muito mais grave do que a gripe comum?
Zaki – Essa é uma questão difícil de ser respondida. Ela é mais severa em alguns casos, porque não temos imunidade nessa grande faixa etária dos 20 a 55 anos e 90% dos pacientes podem ter alguma condição subjacente. Mas nem todos têm a gripe em sua manifestação severa. Em geral, a gripe suína não parece causar mais mortalidade do que a gripe sazonal comum.
Agência FAPESP – Podemos dizer que é importante destacar as diferenças entre os dois tipos de gripe, mas que não há razão para pânico em caso de um novo surto do vírus H1N1?
Zaki – Exato. Não há razão alguma para pânico. Precisamos conhecer o inimigo, vacinar, prevenir e continuar a campanha educativa, que inclui lavar as mãos, seguir regras de higiene, etc. Esse é o ponto. Mas não é preciso se preocupar com essa gripe mais do que fazemos com a gripe sazonal. Trata-se apenas de mais uma forma de gripe sobre a qual precisamos saber mais. Não é mais mortal, nem mais perigosa. É apenas diferente. E precisamos nos preparar para essas diferenças.
Agência FAPESP – Em relação ao vírus H1N1 e à influenza de modo geral, qual é o foco da pesquisa, atualmente, no seu grupo do CDC?
Zaki – Estamos observando as transformações do H1N1. Cada vez mais estamos vendo casos envolvendo as vias superiores. Então, nossa principal questão é saber se o vírus permanecerá o mesmo, ou se vai se adaptar e ficar mais parecido com a variedade sazonal em relação à patologia.
Agência FAPESP – Os esforços, então, estão voltados para compreender o próprio vírus?
Zaki – Sim, mas não estamos tão ocupados como há cinco meses. Agora, podemos fazer estudos de rotina e levar adiante trabalhos de epidemiologia. Fazemos estudos a partir de cerca 800 casos fatais que recebemos, sendo que em metade deles foi confirmado que a morte foi causada por influenza. Daqui em diante, o importante é também aprimorar os diagnósticos clínicos. Em muitos casos achamos que o paciente morreu de gripe, mas que ele tinha várias doenças ao mesmo tempo. É preciso aprender sobre essas doenças também. Infelizmente, quando se tem uma pandemia, todo mundo pensa só na influenza e tende a atribuir tudo ao vírus. É preciso definir melhor os diagnósticos e educar a população em relação a quais são as características de influenza, distinguindo-as melhor de outros casos.